terça-feira, fevereiro 03, 2009

A geração dos explorados

Recebi há coisa de uma semana atrás um email com um texto interessante. 
Um texto daqueles que já tive vontade de escrever várias vezes mas, talvez por estar numa área na qual o emprego é algo tão escasso, o receio de responder desta forma e sofrer represálias irreversíveis sempre foi imenso.

"Venho por este meio responder ao anúncio colocado por V. Ex.ª a 9 JAN 09 no sítio da internet www.net-empregos.com, onde pretendem recrutar um Licenciado em Engenharia do Ambiente ou semelhante, para exercer o cargo de comunicador inbound na área de engenharia e politicas da agricultura.
Permita-me a ousadia de lhe tecer algumas considerações ao referido anúncio: 
1. A Licenciatura em Engenharia do Ambiente ou semelhantes pressupõe um mínimo de frequência de Ensino superior de pelo menos 5 anos, onde pelo menos se paga, e em números redondos 1000€ anuais em propinas; 
2. A licenciatura em Engenharia do Ambiente ou semelhante pressupõe no seu curriculum pelo menos umas 5 (cinco) cadeiras de matemática generalista e aplicadas à Engenharia. 
3. Ainda que seja um recém-licenciado a concorrer ao emprego, este já possui um Know-How que lhe permite lidar com Decretos-lei, Portarias, Directivas Europeias, normativos de referência, etc. 
4. Pressupõe ainda um licenciado, ter uma dose de inteligência acima da média, que lhe permitiu concluir em tempo útil a sua licenciatura, e após ter estado os seus primeiros 25 anos de vida com a “mochila” às costas. 

O primeiro erro do seu anuncio consiste em aritmética pura, ou seja, o valor que pretende remunerar não se chega nem de perto nem de longe ao valor por si atribuído (630€). 

Senão vejamos: 
Salário Base 2,60 € 
Subsídio de refeição 0,79 € 
Multiplicando este valores pelas horas normais de trabalho e pelos dias úteis do mês obtêm-se o seguinte: 
Total hora 3,39 € 
Total dia 27,12€ (multiplicar pelas 8 horas de trabalho) 
Total mês 596,64€ (multiplicar pelos 22 dias úteis) 

Há ainda a descontar a este valor o IRS e a Segurança Social à taxa em vigor. 
De onde virá o restante? 
Será atribuído em forma de prémio por desempenho ou será subsidio de sapiência? 
Por certo V Ex.ª terá feito estas contas e ter-se-á enganado a transcrever o valor. Este seguramente andará mais perto dos 530€, ou mesmo dos 430€, do que o valor por si apresentado. 

O segundo erro do anúncio prende-se com o referido vencimento. 
Desta feita não por questões de aritmética, mas sim de princípio. 
Será possível que quando colocou o anúncio não fez as contas para chegar à conclusão que com esse vencimento estaria a ultrajar um (ou mais) licenciado, por auferirem um vencimento tão baixo? 
Será possível vivermos continuadamente num país que supostamente aposta na formação e depois oferece vencimentos na casa do salário mínimo? 
Para que tenhamos bem a noção dos valores ridículos de que estamos a falar, por curiosidade, vi um anúncio onde uma senhora se oferecia para limpezas e pedia 6€ à hora. Sensivelmente o dobro do que aqui oferecem. 
Admitindo que estaria desempregado e que realmente necessitava de emprego, por valores superiores a esses estaria a repor detergentes (nota: para mim uma profissão tão honrada e nobre como outra qualquer) nas prateleiras duma superfície comercial qualquer, que por certo não me obrigaria a desgaste mental de andar a ler decretos, portarias e tirar dúvidas com conteúdo científico. 

Atrevo-me a dizer que é vergonhoso, ou pelo menos deveria ser, para quem colocou o anúncio, e não menos vergonhoso para quem o mandou colocar. 
E se realmente é esse o salário que oferece tenha a dignidade de o ocultar e de não espalhar pelo país que é isto que os quadros superiores auferem pelo contributo que dão à nossa sociedade. 

Atentamente Rui Dinis 

P.S. Segundo as suas contas este documento vale 1,13€ (brutos) referente a 20 minutos de ocupação.

Quem escreve desta forma consegue colocar num email aquilo que passa pela cabeça de muitos nós.
Quantos colegas de curso (licenciados em jornalismo e outras licenciaturas na área da comunicação) estão registados em sites como o net-empregos ou o cargadetrabalhos e recebem diariamente várias ofertas de trabalho.

Sim, é de trabalho, não é de emprego.
A maior parte das ofertas não contemplam um salário!

Como?
Não há salário?

Quer dizer que temos de trabalhar de graça depois de anos na faculdade, a gastar dinheiro em propinas (aquela história do ensino superior tendencialmente gratuíto pode equiparar-se a uma Amy Winehouse tendencialmente sóbria e "clean"), em livros, em fotocópias, material escolar, transportes e alimentação - adoro especialmente aquela parte em que temos de entregar 3 cópias da monografia e do relatório de estágio e só uma delas é lida e, mesmo assim, só na diagonal. E não são três molhos de folhas, são 3 grupos de folhas devidamente encadernadinhas. - e não posso esquecer quem foi estudar para longe de casa dos pais.

Um somatório de encargos que, no final da licenciatura, tem como prémio o quê?
Um estágio curricular.
Leia-se: "um estágio em que as faculdades fornecem às empresas donas de orgãos de comunicação mão de obra gratuíta".
Depois disso, e como as empresas se habituaram à "mama" e, mais ainda, sabem que há imensos candidatos para um número restrito de vagas, usam o ridículo isco - no qual muitos caem - de dar a "possibilidade de integrar os quadros" ou de "um futuro na empresa", algo que se pode traduzir por outras palavras "vem! vem! ficas cá uns meses e depois vem outro que cai que nem um patinho como tu!".

Há pouco mais de um ano fui a uma entrevista para um projecto interessante. 
Havia dinheiro à farta - aliás, o responsável da empresa fez questão de frisar que a empresa recebia imenso dinheiro de vários patrocinadores, Estado e autarquias - e o senhor estava disposto a oferecer-me um ordenado de 1500€/mês, mais prémio de produtividade e prémio de assiduidade... mas só após 5 meses no emprego. Até chegar a essa altura iria estar dois meses a receber 4,60€/dia e outros 3 meses a receber 600€/mês.

O estranho disto é a visão de alguém que nos diz "olha, eu quero pagar-te um ordenado, mas antes disso pretendo explorar-te bem. Pode ser? Anda lá! Depois vais receber bem!".
Na altura cheirou-me a esturro e recusei. Hoje em dia não me arrependo, até porque nunca ouvi falar da empresa em questão - apesar de ter ido agorinha mesmo ver se estava em funcionamento e ter constatado que está, apesar de não ter tido o desenvolvimento/expansão que na altura me foi apresentado.

Mas, desde então, é raro ver uma oferta de algo sem dizer "não remunerado" ou onde diga no final "ajudas de custo" ou "subsídio de alimentação", geralmente na ordem dos 100€ a 150€.

Mas esta gente pensa o quê?
Que depois de andarmos a gastar uma pipa de massa nos estudos temos de andar a servir de burros de carga para os senhores encherem os bolsos às nossas custas?

Onde é que o Sindicato dos Jornalistas se impõe nesta hora?
Não se impõe.
Embora, por vezes, se disponha a perder uns minutos a enviar umas linhas sobre o assunto.

E o governo tem a sua culpa.
Porquê?
Por duas razões:
1) porque permite que estes abusos sejam cometidos sem qualquer regulação.
2) porque o próprio Estado faz o mesmo. Por exemplo, o Ministério da Educação tem os estagiários a trabalhar sem qualquer remuneração. Em algumas licenciaturas, em que o estágio coincidia com o último ano do curso (falo de pré-Bolonha), os alunos andavam a pagar propinas ao Estado e a trabalhar de borla para o mesmo Estado.

Agora expliquem-me:
QUE RAIO DE ÉPOCA É ESTA EM QUE TEMOS DE PAGAR PARA TRABALHAR?

As coisas chegaram a um ponto em que não há vergonha na cara de quem emprega. 
É suposto alguém viver com rendimentos inferiores às despesas correntes?
O descaramento é tanto que se oferece trabalho a troco de...experiência.
A falta de decência é tão grande que quem emprega já coloca anúncios como se estivesse a fazer o favor de aceitar alguém para trabalhar sem lhe pagar um tostão!

E nós, os que trabalhamos e prezamos o emprego, o salário e alguma estabilidade, trememos!
Vivemos com receio de fazer ou dizer alguma coisa que nos deite por terra as já raras oportunidades de trabalhar, ainda que mal pagos!

Se alguém quiser fazer alguma coisa quanto a isto, então que deixe comentário.
Pode ser que se comece a juntar uma pequena minoria de incomodados com o estado das coisas.


FOI PROFUNDO!

1 comentário:

Speeder76 disse...

Bravo, Bravo! Excelente. É por isso que já desistti há muito de responder aos anuncios desse e do Carga de Trabalhos, porque nada oferecem em troca.

Cada vez mais me convenço que os melhores empregos aparecem or fora do sistema, tás a ver? E tou a ter cada vez mais exemplos disso, meu amigo!

Dispenso...

Porque tudo o que é dito é dispensável...
Porque tudo o que é escrito é dispensável...

Este é um blog onde se fala a sério e se brinca.
Quem não goste de ironia ou sarcasmo que feche esta página rapidamente!
Aqui ninguém tem razão.
Eu não pretendo estar certo, pretendo observar e pretendo fazê-lo de uma forma atenta e crítica...de uma forma dispensável.

Dispenso...um blog dispensável.

pessoas já dispensaram um tempinho para dar uma espreitadela